Na presente publicação, o BLOG PROF. STEFAN - LÍNGUA PORTUGUESA - TEXTOS está celebrando o seu primeiro ano na rede mundial de computadores. O BLOG jubilosamente estende as congratulações a todos os internautas leitores, que aperfeiçoam continuamente a sua comunicação lingüística através da rica variedade de textos apresentada.
TEXTO: Epidemia polissilábica (Otto Lara Resende)
RIO DE JANEIRO - Já se disse que a crise é de dicionário. Paulo Rónai denunciou a existência de uma geração sem palavras. Uma só, não, digo eu. Várias. A crise é semântica, disse um professor na Sorbonne, que convocou um seminário. Pode ser, diz o Pedro Gomes. Mas é também polissilábica. E me expõe a sua tese: nenhum país agüenta tantos palavrões como os que circulam agora por aí. Palavrão no sentido estrito de palavra grande.
A maior delas, como aprendemos na remota infância, tem até governado o Brasil. É essa mesmo: inconstitucionalissimamente. Depois deste advérbio, no seu hoje modesto pioneirismo, apareceram verdadeiros bondes vocabulares. Autênticos minhocões. São cada vez mais numerosos e compridos, como a composição ferroviária que transporta minérios. A perder de vista, todos têm de cinco sílabas para cima. São centopéias de tirar o fôlego e de destroncar a língua.
Na porta do Jockey, depois do almoço, um sujeito conversava outro dia, sereno, sobre a atratividade do investimento superavitário. Temi pela sua digestão, se é que não foi vítima de uma congestão. Ou de um insulto cerebral. Mas há pessoas insuscetíveis de insulto, sobretudo cerebral. É o caso do cidadão que discorreu sobre o obstaculizado caminho que o Brasil tem de percorrer, se quiser alcançar um nível de competitividade num cenário de internacionalização do livre-cambismo.
Até a carta-testamento do Getúlio, obstaculizar não tinha feito a sua aparição triunfal. Dizem que foi idéia do Maciel Filho, que tinha este vezo nacionalista da palavra complicada. Na verdade, é difícil inovar o jargão político. Para atacar José Américo de Almeida, história antiga, Benedito Valladares lançou no mercado a palavra boquirroto. Logo os adversários disseram que era soprado pelo Orozimbo Nonato, um íntimo do Vieira e do Bernardes. Arrazoava com um cunho seiscentista.
Enfim, tudo hoje em dia gera distorções. Gerar é um verbo-ônibus. Serve para tudo. Confiemos, porém, que a seu tempo, a nível de país, na expressão abominável que hoje é corrente, a solução seja equacionada. A desestabilização extrapola de qualquer colocação. Longe de mim o catastrofismo, mas no caminho polissilábico em que vamos, a ingovernabilidade é fatal. E talvez passemos antes pela platino-dolarização contingencial. (Folha de S. Paulo, 22/07/91)
ANALISANDO O TEXTO
1. O primeiro parágrafo apresenta o assunto que será tratado. A estratégia utilizada para isso é a seguinte: para introduzir o assunto, o texto apresenta primeiramente afirmações relacionadas a ele (a "crise do dicionário", a "geração sem palavras" e a "crise semântica") para posteriormente (através de uma frase introduzida pela conjunção coordenativa adversativa "mas") seguir para o tema central: o excesso de polissílabos. O humor participa já nesse parágrafo, quando existe referência aos sentidos possíveis do vocábulo "palavrão".
2. Já o segundo, o terceiro e o quarto parágrafos levantam dados para desenvolver o assunto proposto. Os dados oferecidos na argumentação são os seguintes: partindo da célebre palavra "inconstitucionalissimamente", o autor cita vários episódios em que os polissílabos foram usados abusivamente. O texto utiliza esses episódios e as palavras nele envolvidas para comprovar a tese de que os polissílabos invadiram o Brasil.
3. O "palavrão" "tem até governado o Brasil" porque, durante o ano de 1991, diversos decretos e leis inconstitucionais foram encaminhados ao Congresso Nacional e alguns deles foram aprovados pelo então presidente da República, Fernando Collor de Mello.
4. A passagem "Mas há pessoas insuscetíveis de insulto, sobretudo cerebral." é irônica. Ela sugere que há pessoas cuja capacidade cerebral limitada as torna invulneráveis a insultos. Elas provavelmente não os entenderiam.
5. Ser "íntimo do Vieira e do Bernardes" significa ser leitor dos autores clássicos da língua portuguesa, no caso, os padres Antônio Vieira e Manuel Bernardes, que foram escritores no século XVII. Otto Lara Resende era, evidentemente, conhecedor desses autores e dos outros citados no texto. Pressupõe-se que o leitor seja capaz de compreender tais referências. Assim, caracteriza-se o perfil do emissor e do receptor do texto.
6. "Verbo-ônibus" é um verbo que "serve para tudo", isto é, utilizado com os mais variados sentidos nos mais diversos contextos.
7. O último parágrafo expõe a conclusão do texto. A ironia novamente é o principal recurso expressivo, pois o autor utiliza os polissílabos sobre os quais vinha falando, criando uma linguagem empolada de forma ridícula.
8. O texto apresenta muitas imagens deliciosas para se referir aos polissílabos: "bondes vocabulares", "autênticos minhocões", "composição ferroviária que transporta minérios", "centopéias de tirar o fôlego e de destroncar a língua".
9. O abuso de polissílabos é prejudicial à comunicação na medida em que a linguagem se torna complicada. Isso pode significar um forte desejo de desinformar. A desinformação ocorre quando não se tem nada de importante a dizer ou, sobretudo, quando se quer mascarar a realidade por intermédio das palavras.
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