quarta-feira, 20 de março de 2013

Ano II - número 8 - mar./abr. / 13: Ortografia

TEXTO:  crônica de autoria de Mario Prata. In: O Estado de S. Paulo, 12/11/1997.
Acabaram com a nossa letra
         Faço as minhas compras no supermercado, pego o meu talão de cheques, vou preencher. A mocinha:
           _ Pode deixar que a máquina faz isso!
           Fico uns segundos atabalhoado, olho para o cheque.
           _ Faço questão de eu mesmo preencher.
           E preenchi.
           A cena é corriqueira, não é? Mas ali, naquele momento, aquela mocinha estava me tirando o prazer de colocar a minha letra no cheque. Afinal, pensei eu naquele momento, é a única coisa que eu escrevo à mão: o cheque.
       Você já notou que a gente não escreve mais nada? Nada! Acho que desde que saí da faculdade não uso a mão para tais finalidades. Estão aí todas as máquinas e cartões para tal uso.
         E olha que aprender a escrever à mão, no meu tempo, era uma dificuldade. No curso primário a gente tinha aula de linguagem. Tinha o caderno de linguagem, que todos eram obrigados a comprar. A linha era subdividida em duas partes, sendo a de baixo menorzinha para caberem as letras baixas, como o "a" e o "o", por exemplo. E quando pintava um "l" ou um "t", tinha que ir até lá em cima. Assim, todo mundo ficava com a letra igual à da professora, que era perfeita, por sinal.
            Com o passar dos anos e com o desuso, a minha letra foi ficando horrorosa. Nem eu mesmo entendia. Passei a só escrever em letra de forma. O tempo passou mais e mais e a letra de forma se foi deformando toda. Mas dava para o cheque. Agora, com a máquina de preencher cheque, lá se vai a minha letra. Com você anda acontecendo o mesmo? 
                Tenho certeza que, no futuro próximo, os alunos vão levar os notebooks para a sala de aula. A letra à mão será coisa pré-histórica. Imagino os novos alunos, quando já grandinhos, olhando as receitas dos médicos e imaginando que os pais e avós escreviam daquele jeito. Ou será que também os médicos vão ter uma maquininha para dar suas tortas receitas?
                Fico triste ao constatar tudo isso. É como se uma parte de mim fosse embora. Uma parte 
trabalhada duramente durante anos e anos.
              O correio-elegante das quermesses, como ficará? Persistirá, mesmo com as pessoas tendo letras cada vez mais confusas? Como conquistar uma moça com aquela letra, gente? E o cartãozinho das flores remetidas? Será que só usaremos as letras manuais para os motivos apaixonantes?
                 Chegará o momento que usaremos a nossa mão apenas para a assinatura. Ou será que teremos um cartão a laser que, passado em cima de um papel, depois de codificado por um número, imprimirá nossa assinatura? Ou será que voltaremos ao uso infalível da impressão digital?
                Será que um dia chegaremos ao absurdo de ser proibido escrever à mão? Penas pesadas   para os infratores? Fulano preso escrevendo poesias em plena praça. O que o pai do fulano não vai pensar daquilo? Mesmo a multa aplicada pelo guarda não será escrita à mão. Ele digita a placa do seu carro e a informação vai diretamente para o Detran.
               Nos países mais metidos a besta (também conhecidos como Primeiro Mundo), os garçons já pegam o seu pedido com um minicomputador que leva imediatamente o seu pedido para o cozinheiro. Nem garçom vai escrever mais.
           Claro que o jogo do bicho será rapidamente informatizado, evitando aqueles papeizinhos que a gente sempre perde ou não confere. Sorteio de amigo-secreto com aqueles pedacinhos de papéis dobrados. Sobreviverá? Haverá, na repartição, ainda alguém com boa letra para tanto?
                Como as secretárias vão avisar o chefe que fulano telefonou a tal hora? Tudo por cabos eletrônicos, é claro.
                 Agendas eletrônicas já se encontram em qualquer das boas casas do ramo.
                 E conta? Alguém ainda faz contas no papel? Será que nas escolas ainda ensinam raiz quadrada, com o aluno ali com a sua calculadora? Você deve saber que, nos vestibulares, já se admitem as tais maquininhas.
                    Listinha de pecados para se confessar. Grava-se num gravadorzinho e enfia no ouvido do padre. Afinal, os nossos pecados são sempre os mesmos. Principalmente o pecado da preguiça, que marcará nossas vidas neste século que está chegando. Em algarismos romanos, sei lá por quê.


ANALISANDO O TEXTO
1.  O texto é uma crônica muito bem-humorada do escritor Mario Prata, que, tendo como ponto de partida a máquina eletrônica de preencher cheques, mostra um homem engolido pela sociedade tecnológica.
2.  O cronista lamenta que, paulatinamente, através do uso das máquinas, as pessoas deixem de escrever. O fato desencadeador de suas reflexões é aquilo de novo no supermercado: a máquina preenche o cheque. O ato de escrever corre o sério risco de desaparecer. 
3.  A palavra letra é empregada com alguns significados:  de caligrafia ("... a minha letra foi ficando horrorosa.") e de sinal gráfico utilizado na escrita ("... sendo a de baixo menorzinha para caberem as letras baixas ...").
4.  Pensando nos mecanismos que podem substituir a escrita manual, após uma série de conjeturas, o autor indaga: "Ou será que voltaremos ao uso infalível da impressão digital?". Depois de um longo período de substituição da escrita manual, ele sugere que a volta à impressão digital representa a volta ao analfabetismo. Supõe-se que, deixando de escrever, o homem se esqueça de tudo. Na realidade, os registros continuariam sendo feitos de outra maneira e a leitura continuaria existindo.
5.  A última frase da crônica se relaciona com tudo o que Mario Prata disse, pois ele sugere que acontecerá com a escrita manual o mesmo que acontece com os algarismos romanos: tão distantes do nosso mundo atual e tão anacrônicos.
6.  Para escrever um texto, uma pessoa necessita de um lápis ou de uma caneta, de um pedaço de carvão, de uma máquina de escrever ou de um computador; necessita de papel ou muro ou parede, tábua, pedra, areia da praia; precisa ter uma idéia, conhecer as letras e as palavras, enfim, precisa ser alfabetizada.